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[Excerto] Uma epidemia global, abrupta, sem termo. O vírus não se vê, não se ouve, nem se toca, mas apodera-se de nós. Contamina a um ritmo letal de que a vida não tem memória. Apóstolos da ciência, o desconhecimento desarma-nos. A vacina e a cura encobrem-se num nevoeiro sebastiânico. O poder está em estado de alerta e a sociedade em estado de alarme. De um momento para outro, sentimo-nos indefesos. O confinamento cristaliza esta vulnerabilidade. A adesão foi franca. Face ao perigo, encolhemo-nos e recolhemo-nos como caracóis. A pandemia, que mobiliza organizações e instituições nacionais e internacionais, configura uma calamidade pública que exige intervenção coletiva. Tudo é enorme, monstruoso, à medida de um olhar macrossociológico. Mas importa estar atento à pulsação das minudências quotidianas, senão privadas. Importa cultivar um olhar míope, microssociológico. Ver de perto o confinamento do mundo da vida, incluindo a interação, os rituais e as relações pessoais. Não é de menosprezar a ideia, entretanto vulgarizada, de um afrouxamento dos laços sociais. O reverso aponta, com a crise, para um estreitamento dos laços à escala doméstica. Se as ruas estão desertas, as casas estão atestadas. Pior do que a compressão no espaço, é a extensão no tempo. O espaço partilha-se, mais ou menos, como dantes, mas de forma permanente e sem termo certo, o que configura uma experiência inédita. A gente acomoda-se e incomoda-se. Cada membro da família negoceia os seus recantos. A cada um, o seu nicho de intimidade e restauro da identidade. Sucedem-se refúgios individuais e encruzilhadas comuns. Dia após dia, afina-se a sensibilidade à intrusão. É tempo de stress. Desconheço os efeitos deste convívio forçado prolongado. Tanto pode reforçar a coesão e a harmonia, como pode degenerar em conflito e descompensação. Duvido que Zygmunt Bauman (2006) tenha previsto o presente cenário. Um afrouxamento dos laços sociais sistemático e do tamanho do planeta. [...] |