Natureza Essencial Das Sociedades Mistas e Empresas Públicas
Autor: | Celso Antônio Bandeira de Mello |
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Rok vydání: | 2021 |
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Zdroj: | Repositório Institucional do STJ Superior Tribunal de Justiça (STJ) instacron:STJ |
ISSN: | 2675-9527 2526-8120 |
DOI: | 10.48143/rdai/16.celsoantoniobandeira |
Popis: | As empresas controladas total ou majoritariamente pelo Estado e as fundações por ele instituídas, tenham ou não a forma e a rotulação de pessoas de direito privado, são, essencialmente, instrumentos personalizados da ação do Poder Público. Nisto não discrepam as empresas públicas, as sociedades de economia mista típicas, aquel´outras cujo controle o Estado detém por meio de sua administração indireta (sociedades mistas de 2ª e 3ª gerações) e os sujeitos de direito instituídos com o nomen iuris de fundações de direito privado. Todas essas figuras, sem exceção, consistem fundamentalmente, em veículos personalizados de sua atuação. Se não o fossem, o Estado ou pessoa de sua administração indireta não teriam porque criá-las ou, então, assumir-lhes a prevalência acionária votante e delas se servir para a realização de escopos seus. Assim, a marca básica e peculiar de tais sujeitos reside no fato de serem coadjuvantes dos misteres estatais; de se constituírem em entidades auxiliares da Administração. Nada pode desfazer este signo esculpido em suas naturezas, a partir de instante em que o Poder Público as cria ou lhes assume o controle acionário. Esta realidade jurídica representa o mais certeiro norte para intelecção destas pessoas. Consequentemente, aí está o critério retor para a interpretação dos princípios jurídicos que lhe são obrigatoriamente aplicáveis, pena de converter-se o acidental – suas personalidades de direito privado – em essencial e o essencial – seu caráter de sujeitos auxiliares de Estado – em acidental. Como os objetivos estatais são profundamente distintos dos escopos privados, próprio dos particulares, já que almejam o bem-estar coletivo e não o proveito individual, singular (que é perseguido pelos particulares), compreende-se que exista um abismo profundo entre tais entidades e as demais pessoas jurídicas de direito privado. Segue-se que a personalidade jurídica de direito privado conferida a estes sujeitos auxiliares do Estado não significa que se parifiquem ou que se devam parificar à generalidade das sociedades privadas. Se assim fosse, haveria comprometimento tanto de seus objetivos e funções essenciais quanto da lisura no manejo de recursos hauridos, total ou parcialmente, nos cofres públicos, como ainda das garantias dos administrados, descendentes da própria índole do Estado de Direito ou das disposições constitucionais que as explicitam. Recorde-se que, no Estado de Direito, os preceitos conformadores da sua atuação pública não visam tão-só curar o interesse coletivo, mas propõem-se, declaradamente, a resguardar os indivíduos e grupos sociais contra a ação desatada ou descometida do Poder Público. Esta é, aliás, a razão política inspiradora do Estado de Direito. Desconhecer ou menoscabar estes dados nucleares implicaria ofensa às diretrizes fundamentais do Texto Constitucional. Assim, não é prestante interpretação que os postergue. As entidades constituídas à sombra do Estado para produzir utilidade coletiva e que manejam recursos captados total ou majoritariamente de fontes públicas têm que estar submetidas a regras cautelares, defensivas quer da lisura e propriedade no dispêndio destes recursos, quer de sua correção na busca de objetivos estatais. Assim, embora dotadas de personalidade jurídica de direito privado é natural que sofram o influxo de princípios e normas armados ao propósito de proteger certos interesses e valores dos quais o Estado não pode evadir, quer atue diretamente, quer atue por interpostas pessoas. Exigências provenientes, explícita ou implicitamente, da própria noção de Estado de Direito, bem como as que procedem da natureza dos encargos estatais, impõem o afluxo de cânones especificamente adaptados às missões estatais. Pouco importando, quanto a isto, esteja o Poder Público operando por si mesmo ou mediante pessoas que o coadjuvam em seus misteres. As entidades referidas são, como se disse, acima de tudo, meros instrumentos de atuação do Estado; simples figuras técnico-jurídicas, concebidas para melhor desenvolver objetivos que transcendem os interesses privados. Daí sua profunda diferenças em relação aos demais sujeitos de direito privado. A personalidade de direito privado, que lhes seja infundida, é apenas um meio que não pode ser deificado ao ponto de comprometer-lhes os fins. Através destes sujeitos auxiliares, o Estado realiza cometimentos de dupla natureza: a) Explora atividades econômicas que, em princípio, competem às empresas privadas (art. 170, caput, do Texto Constitucional) e só suplementarmente lhe cabem (§1° do art. 170) e b) presta serviços públicos, encargos tipicamente seus. Há, portanto, dois tipos fundamentais de empresas públicas e sociedades de economia mista: exploradoras de atividade econômica e prestadoras de serviços públicos. Seus regimes jurídicos não são nem podem ser idênticos, como procuramos mostrar em outra oportunidade (Prestação de Serviços Públicos e Administração Indireta, Ed. RT, 2ª ed., 1979, especialmente pp. 101 e ss., 119, 122, 124, 135, 141 e 143). Eros Roberto Grau também enfatiza vigorosamente esta distinção (Elementos de Direito Econômico, Ed. RT, 1981, especialmente p. 103). No primeiro caso, é compreensível que o regime jurídico de tais pessoas seja o mais possível próximo daquele aplicável à generalidade das pessoas de direito privado. Seja pela natureza do objeto de sua ação, seja para prevenir que desfrutem de situação vantajosa em relação às empresas privadas, – a quem cabe a senhoria preferencial no campo econômico – compreende-se que estejam submissas a disciplina jurídica equivalente à dos particulares. Daí haver o Texto Constitucional estabelecido que em tais hipóteses submeter-se-ão às mesmas regras aplicáveis às empresas privadas (art. 170, §2°). No segundo caso, quando concebidas para prestar serviços públicos ou desenvolver quaisquer atividades de índole pública, propriamente, quais a realização de obras públicas, é natural que sofram mais acentuada influência de princípios e regras ajustados ao resguardo de interesses dessa natureza. De toda sorte, umas e outras – exploradoras de atividade econômica e prestadoras de serviços públicos – por força do próprio Texto Constitucional, vêem-se colhidas por normas, ali residentes, que impedem a perfeita simetria de regime jurídico entre elas e a generalidade dos sujeitos de direito privado. Sirvam de demonstração os arts. 34, 35, 45, 62 e §1°, 99, §2°, 110 e 125, I (estes últimos dois concernentes apenas as empresas públicas) 151, III, “c”, n. 3, 156, §2°, “g” e 205. Fica visível, portanto, que os preceptivos mencionados reduzem o alcance do art. 170, §2° e gisam a verdadeira dimensão de seu comando. Nota-se, pois, que em algum caso seu regime será idêntico ao das empresas privadas. Em sendo assim, reforça-se a ideia de que não podem se esquivar a certas disposições que configuram garantias mínimas para a defesa de certos interesses públicos quando se trate de entidades prepostas ao desempenho de serviços públicos ou atividades especificamente públicas. Entre estas garantias mínimas certamente está a obrigação de se submeterem aos princípios sobre licitação e sobre contratos administrativos, assim como a uma disciplina que imponha certas contenções a seus agentes. Se é compreensível que estes sujeitos auxiliares do Estado não se assujeitem ao regime cautelar inerente à licitação e aos contratos administrativos, quando forem exploradores de atividade econômica, não se compreende permaneçam esquivos a tal esquema quando exercitam atividade eminentemente estatal e tipicamente de alçado do Poder Público. Deveras, nesta última hipótese não estarão abrangidos pelo disposto no art. 170, §2°, da Carta do País, pois o versículo em apreço só se reporta às empresas públicas e sociedades de economia mista que exploram atividade econômica (vide ao respeito Eros Roberto Grau, ob. e loc. cits.). Além disto, nenhuma razão prestante existe para obstar lhes sejam irrogados os cânones atinentes à licitação ou para empecer que seus contratos sejam regidos como contratos administrativos, tal como efetivamente o são, pelo escopo que os anima. O gênero da atividade desenvolvida não se incompatibilizam com a licitação, vez que não se põem aí as mesmas exigências de uma desatada agilidade de compra e venda de bens, nem se colocam como obstáculos práticas mercantis incontornáveis, perante as quais a licitação seria grave estorvo, impediente de atuação eficaz na área econômica. Logo, nada concorre para desabonar a adoção do regime licitatório estatal no caso dos sujeitos auxiliares do Estado que atuam na prestação de serviços e obras caracteristicamente públicas. Menos ainda haveria razões que desaconselhassem o regime inerente aos contratos administrativos. Inversamente, inúmeras razões postulam a acolhida dos aludidos preceitos, como a seguir se demonstra.As normas sobre licitação significam e representam o meio de assegurar um tratamento isonômico aos administrados, na medida em que assim são ensanchadas, a todos, iguais oportunidades de disputarem, entre si, os negócios que as entidades governamentais se proponham a realizar com terceiros. A licitação é concreta aplicação, em um setor específico, do princípio constitucional da igualdade, previsto no art. 153, §1°. Sem ofensa ao Direito é impossível desconhecê-lo. A licitação é, demais disso, fórmula hábil para a busca dos negócios mais convenientes para o Poder Público; dever do qual este não se pode despedir, pois está em causa o meneio de recursos, total ou parcialmente, originários dos cofres públicos direta ou indiretamente. Finalmente, através da licitação intenta-se obstar conluios entre agentes governamentais e terceiros, dos quais adviria ofensa a interesses da coletividade e lesão à “probidade da administração”. Esta, sobre ser um valor moral, configura-se também como um valor jurídico, posto que o art. 82, V, da Carta do País, inclui entre os crimes de responsabilidade “atentar contra a probidade da administração”. De fora parte todos estes aspectos sublinhados, é indispensável relembrar que, na atualidade, a maioria ou pelo menos grande parte das aquisições e contratos mais vultosos efetuados pelo Poder Público são realizados precisamente por estas entidades. A admitir que possam lavar do dever de licitar, todo o mecanismo cautelar previsto para contratos deste jaez perderia seu principal objeto. Nas malhas deste regime ficaria capturada a minoria dos contratos e os de menor expressão econômica, enquanto dele se evadiria a maior parte e os de maior significação patrimonial. É a esta insensatez, certamente não querida nem tolerada pelo Texto Constitucional, que conduz a liberdade ora desfrutada pelos sujeitos em questão. O quanto se disse no referente às licitações, por igual se estende no referente aos contratos. Tanto basta para concluir que a própria lógica do sistema constitucional impõe o regime licitatório e o regime do contrato administrativo às pessoas governamentais que prestam serviços públicos ou realizam obras públicas. Os dirigentes e o pessoal de empresas públicas, de sociedades controladas pelo Estado ou pessoa de sua administração indireta e de fundações instituídas pelo Poder Público, quaisquer que sejam suas finalidades (exploração de atividade econômica ou prestação de serviços públicos), mobilizam importante setor da atividade governamental. Similarmente aos funcionários públicos, operam, também, um segmento da máquina administrativa. O fato desta parcela do aparelhamento estatal ser estruturada pelo figurino do direito privado não significa, de direito, ou de fato, que o aparelho em questão desgarre da órbita do Poder Público. Nem significa que os interesses postos em causa percam, pela qualificação subjetiva (privada) da pessoa que os desempenha, o caráter de interesses transcendentes às preocupações privadas. Igualmente não significa que seus agentes careçam de compromissos com as finalidades de interesse coletivo e muito menos significa que lhes falte a mesma espécie de poder e de influência que os funcionários públicos acaso possam ter em razão dos cargos que detenham na Administração direta. Assim é incompreensível que funcionários públicos sejam contidos, como são, por múltiplas proibições e impedimentos (havidos como consectários da natureza de seus encargos) enquanto os agentes dos demais sujeitos auxiliares do Estado ficam libertos de contenções equivalentes. Uns, tanto quanto outros, podem agravar interesses coletivos e comprometer o correto desempenho de suas funções caso não estejam detidos pelas restrições aludidas. A natureza privada de certo tipo de sujeitos coadjuvantes do Estado em nada e por nada descaracteriza ou elide o risco de que seus agentes incidam nas mesmas falências temidas em relação aos funcionários públicos. Daí a necessidade de considerar extensivas aos agentes das empresas públicas, sociedades cuja maioria acionária seja detida pelo Estado ou pessoa de sua administração indireta e fundações criadas pelo Governo, correspondentes limitações impostas aos funcionários públicos, como as do art. 195 do Estatuto da União e 242 e 243 do Estado de São Paulo (em ressalva parcial do item VII deste último). Os aspectos focalizados concernem tão-só a alguns ângulos do regime jurídico das pessoas auxiliares do Estado constituídas sob figuração de direito privado e que estão a merecer urgente revisão doutrinária e jurisprudencial. Muitos outros existem e dizem tanto com a necessária disceptação de regime entre elas e a generalidade das pessoas de direito privado quanto com a imprescindível disquisição de regime jurídico entre os sujeitos coadjuvantes do Estado que exploram atividade econômica e os que prestam serviços públicos. A verdade é que estes sujeitos auxiliares do Estado, que surdiram sob o acicate de necessidades próprias de um dado período histórico, nascem inocentemente refratários ou rebeldes ao tradicional enquadramento nos escaninhos mentais preparados para recebe-los, pois concebidos em outro período histórico, no qual foi articulada a clássica dicotomia: pessoa de direito público e pessoa de direito privado. Ainda que tal distinção jamais tenha sido pacífica e extreme de graves dificuldades, os problemas hoje se agudizam. Impende, no mínimo, reconhecer que há diferentes níveis de operacionalidade na distinção pessoa jurídica de direito público e pessoa de direito privado. Seu nível de mais baixa funcionalidade reside precisamente no ponto de confluência onde se sediam certas pessoas compostas ou assumidas pelo Poder Público para auxiliá-los em seus cometimentos e às quais irrogou o nomen iuris de pessoas de direito privado. Lúcia Valle Figueiredo, em oportuníssima monografia sobre Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista, já pusera em questão, entre nós, o ajustamento destas figuras ao modelo paradigmático de pessoa de direito privado. Jean Denis Bredin, na França, sustentou, em tese de doutoramento, o hibridismo destas criaturas (L´Entrepise Semi-Publique et Publique et le Droit Privé, Paris, 1957). Quadra registrar, então, que não se pode tornar “fetichisticamente” a afirmação normativa de que tais entidades são pessoas de direito privado e muito menos no caso em que sejam constituídas para a prestação de serviços públicos ou condução de atividades caracteristicamente públicas. Nestas hipóteses, o grau de funcionalidade da distinção entre pessoa de direito público e pessoa de direito privado — questão que se resume a uma discriminação de regimes — cai para seu nível mínimo. Embora sem apagar a distinção existente, reduz-se a teores modestos, dada a vigorosa concorrência de princípios e normas publicísticas inevitavelmente afluentes para a proteção da atividade desempenhada, controle da ação de seus agentes e defesa dos administrados. Assim, a personalidade de direito privado que lhes seja infundida, é matizada por vivos tons de direito público, a fim de ajustar-se a suas funções. Estará em pauta, em tal situação, atividade tipicamente administrativa, a qual faz emergir a relação de administração, que, como pontifica luminosamente Cirne Lima: “Somente se nos depara, no plano das relações jurídicas, quando a finalidade, que a atividade de administração se propõe, nos parece defendida contra o próprio agente e contra terceiros” (Princípios de Direito Administrativo, RT, 5ª ed., 1982, p. 53). Destarte, é preciso admitir sem rebuços que os sujeitos de direito ancilares do Estado, conquanto venham a receber rótulos de pessoas de direito privado, não podem eludir suas naturezas essenciais de coadjuvantes do Poder Público. Disto resultará, inexoravelmente, uma força imantadora que faz atrair sobre elas e sobre suas missões a incidência de preceitos publicísticos. Para recursar esta conclusão, ter-se-ia de sufragar uma tese incompatível com os postulados do Estado de Direito; a saber: que é dado ao Poder estatal, eximir-se de todo o aparato jurídico montado em prol da defesa dos interesses e valores que nele se consagram. Ficar-lhe-ia facultado ladear o modelo defensivo dos administrados, o esquema avalizador de seu ajustamento às regras protetoras do interesse público e do cauteloso meneio de recursos provenientes dos cofres governamentais. Para obter este salvo-conduto, esta carta de isenção a uma ordem normativa que foi estatuída em favor de interesses superiores, nada mais lhe seria necessário senão que se “travestisse”, adotando, para fins esconsos, a roupagem, adereços e ademanes de pessoa de direito privado. Hely Lopes Meirelles (Estudos e Pareceres de Direito Público, Ed. RT, vol. II, pp. 148 a 152) teceu oportunas considerações sobre a originalidade do regime das sociedades mistas, trazendo à colação subsídios doutrinários e jurisprudenciais. Quadra reproduzir a seguinte passagem ilustrativa: “A consulente é uma sociedade de economia mista. É, portanto, pessoa jurídica de direito privado (cf. nosso Direito Administrativo Brasileiro, S. Paulo, 1966, p. 303; Dec-lei 200/67, art. 5°, III). Reveste-se de forma de sociedade anônima, nem por isso se insere na exclusiva disciplina jurídica elaborada para as sociedades mercantis da fins puramente lucrativos (cf. Rubens Nogueira, “Função da Lei na vida dos entes paraestatais”. RDA 99/37). Essa é a posição dominante na doutrina de hoje, que repele o “privatismo” exagerado, relativo às sociedades de economia mista. A essa doutrina aderimos há muito...”. É preciso, portanto, coerentemente, concluir que a primeira das originalidades do regime específico dos sujeitos coadjuvantes do Estado, ainda quando estruturados pela forma de direito privado, é a que resulta das imposições constitucionais alusivas à igualde dos administrados ante o Poder Público — o que impõe o dever de licitar — ou alusivas à defesa do serviço público — o que impõe o regime do contrato administrativo ou ainda alusivas à probidade na Administração — o que impõe cerceios aos seus agentes. Tal como estas, muitas outras imposições existirão no respeitante à conduta e ao controle destes sujeitos ancilares do Estado. Representam, todas elas, atenuações sensíveis no regime de direito privado e interferências ineludíveis do direito público. Servem para comprovar que assim como o direito juridiciza tudo o que toca (como disse Kelsen, comparando-o ao rei Midas, que transformava em ouro o que tangia — Theórie Pure du Droit, Dalloz, 1962, p. 369), o Estado também tem o dom de afetar transformadoramente tudo o que é por ele tocado. Por isso publiciza tudo o que toca. Esta transformação, se acaso é temível, no sentir de alguns, só o será, verdadeiramente, se nos recusarmos a enxergá-la em sua irrefragável realidade, negando-nos a tratá-la com os cerceios que lhe são inerentes, por foça do próprio direito positivo e de seus princípios informadores. Para perceber a obrigatória aplicação de preceitos publicísticos às criaturas coadjuvantes do Estado ou que foram por ele assumidas não se demanda muito. Basta recusar apego às interpretações pedestres que se aferram à mera literalidade de certos dispositivos cuja intelecção requer arejamento. Porque encartadas em segmentos parciais do sistema normativo têm de ser compreendidas à vista do todo no qual se inserem, articuladamente com as demais regras e, sobretudo, com atenção à hierarquia das normas e princípios. É suficiente, portanto, mirá-las a partir dos altiplanos do direito constitucional e com uma perspectiva exegética sistemática. De outra sorte, incorrer-se-á em interpretações não científicas e por isso mesmo caóticas, conflitantes, inarticuladas, as quais, por fim, carecerão até de utilidade prática, desrespeitando-se a já centenária advertência do Conselheiro Ribas, na Prefação a seu Direito Administrativo Brasileiro: “Não há sciencia sem syntheses fundamentaes; tiradas estas, só resta informe acervo de idéias, em cujo labyrintho a intelligencia não póde deixar de transviar-se. “Pelo contrário, desque se possuem estas syntheses, dissipa-se o cahos, faz-se a luz e a ordem no pensamento; aparece constituída a sciencia.“Nem é possível fazer-se acertada applicação de conhecimentos, sem nexo e sem systhema; na falta de merito scientifico, nem siquer lhes resta verdadeira utilidade pratica” (Antonio Joaquim Ribas, Direito Administrativo Brasileiro, Typografia de Pinheiro e Cia., Rio, 1866, p. IX). |
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