Servidores públicos: aspectos constitucionais
Autor: | Celso Antônio Bandeira de Mello |
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Rok vydání: | 2020 |
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Zdroj: | Repositório Institucional do STJ Superior Tribunal de Justiça (STJ) instacron:STJ |
ISSN: | 2675-9527 2526-8120 |
DOI: | 10.48143/rdai.14.mello.cab |
Popis: | Senhores membros da mesa, meus colegas, quero, em primeiro lugar, agradecer a honra desse convite, para estar entre os Procuradores Municipais, a quem já sou ligado por tantos laços de amizade, ensejando-me mais uma ocasião para debater um tema jurídico e propor uma visão a respeito desse assunto dos servidores municipais e, quem sabe, durante os debates, até sugerir alguma coisa pensando na futura Constituinte. Vou me ocupar do ângulo constitucional e o Prof. Adilson Dallari, em seguida, o desenvolverá a partir deste mesmo ângulo constitucional, mas entrando em considerações que também extraem seu fundamento de validade de normas legais. A primeira consideração que quero fazer repisa algo sobre o que venho insistindo há muito tempo. Habitualmente, o tema servidores públicos é cogitado como se se tratasse meramente de um regime de trabalho entre vários possíveis e que se peculiariza tão só por tipificar-se numa relação dita estatutária. Penso, entretanto, que esse tema tem uma dimensão constitucional muitas vezes maior. Em rigor, toda disciplina constitucional do servidor público, está armada em função de objetivos intimamente ligados aos propósitos do próprio Estado de Direito. Poderia parecer surpreendente que um tema, aparentemente pedestre – o regime jurídico básico de servidores públicos –, houvesse sido ubicado no próprio texto constitucional, dando-se-lhe uma posição de realce, paralela a tópicos de acentuada grandeza como os da organização dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, estrutura do Estado, direitos e garantias individuais ou direitos sociais mínimos. Realmente, em primeiro súbito de vista, quem sabe parecesse, sobre insueto, descabido que um texto constitucional pretendesse se ocupar de questões supostamente menores, ao bosquejar as linhas fundamentais do regime dos servidores públicos. Há, contudo, uma razão para isto. E a razão é a seguinte: O Estado de Direito presume, como todos sabemos, a submissão do poder a um quadro de legalidade. O Estado de Direito nasce de um movimento político que se calça tanto na tese da soberania popular quanto na tese da necessidade de contenção do Poder. Realmente, os objetivos que inspiram a consagração jurídica do projeto político do Estado de Direito descansam, sobretudo, no desejo de resguardar o cidadão contra o exercício desatado do Poder. Ora, o descomedimento do exercício do Poder é particularmente perigoso quando proveniente do Poder Executivo. Pois bem, o regime constitucional dos servidores públicos almeja exatamente fixar regras básicas favorecedoras da neutralidade do aparelho estatal, a fim de coibir sobretudo o Poder Executivo de manipulá-lo com desabrimento capaz de comprometer objetivos do Estado de Direito. É a Administração, em rigor de verdade, que mantém com os administrados o mais intenso contato e por isso mais intensamente lhes ameaça a liberdade. Se isso sempre foi verdade, inclusive no período histórico em que emerge o Estado de Direito, hoje, as dimensões deste risco são muito mais amplas. Ninguém ignora que, atualmente, o Poder Público assume na vida social e na vida econômica um papel do mais extremo relevo. A ingerência nas condutas individuais e, mais do que isso, o próprio planejamento do conjunto das condutas sociais é realizado pelo Estado a cotio e a sem fins, sem nenhuma contestação sólida, sem nenhuma bulha doutrinária ou jurisprudencial. O Estado passou a ter uma presença avassaladora que parece ser, até mesmo, resultante de razões alheias a quaisquer projetos puramente políticos ou ideais jurídicos. Está ligada, possivelmente, a fenômenos que promanam do desenvolvimento tecnológico. Este tornou a ação dos indivíduos potencialmente muito mais predatória. Os comportamentos individuais, graças ao progresso dos recursos técnicos, assumiram a possibilidade de grande ressonância e suas repercussões ultrapassaram o âmbito restrito de um pequeno número de pessoas próximas. Com isto, a disciplina das condutas humanas, a contenção da livre atuação dos indivíduos e grupos sociais tem que ser muitas vezes mais completa e mais intensa, para organizar um convívio social aceitável. Hoje, os homens com o uso da máquina, com a disponibilidade dos meios que a civilização proporcionou, friccionam intensamente, não apenas com quem esteja imediatamente próximo, mas até mesmo com os que estão mais longinquamente situados. Pense-se que o direito urbanístico e sua importância contemporânea, por exemplo, são resultados diretos desse fenômeno. Esse direito se tornou relevante por circunstâncias impositivas geradas pelas grandes concentrações humanas, pelos grandes núcleos citadinos, que só puderam multiplicar-se em decorrência do desenvolvimento tecnológico, pois em grande parte foram viabilizados pela possibilidade das construções de edifícios de vários andares. Pense-se na legislação sobre salubridade ambiental, requerida porque a proliferação de fábricas tornou exigente o controle da poluição. Pense-se nas consequências produzidas pelos recursos da informática. Pense-se no automóvel, que permite deslocações rápidas, a grande distâncias, e que também promove grandes congestionamentos. Em suma, os meios tecnológicos em nossa época, acabaram exigindo, por sua possível ação predatória ou, quando menos, por sua repercussão na vida social, uma presença reguladora do Estado muito intensa. Por força disso, passamos a ter nossa liberdade muito mais regulada, vigiada e controlada do que no passado e é inevitável que isto suceda. O agente desse controle, o agente dessas interferências, o agente dessa programação é a máquina estatal. Mas é, sobretudo, o Poder Executivo quem atua, quem promove e quem concretiza tais providências constritoras e elas podem ser, tal como já foram em períodos históricos pretéritos, uma fonte de opressão violentíssima. Pois bem, num período histórico como esse, cumpre que este Estado, que esse aparelho gigantesco, que essa máquina onipresente seja imparcial, seja neutra, caso contrário sossobrarão os objetivos do Estado de Direito. Ora, bem, para que essa máquina seja imparcial, seja neutra, é preciso que os agentes que a operam disponham de certas condições mínimas para cumprir as funções que lhes cabem dentro de um espírito de isenção, de neutralidade, de lealdade para com terceiros, de isonomia no trato com os administrados. Como seria isto possível se os agentes do aparelho estatal e, basicamente, do Poder Executivo não dispusessem de um estatuto jurídico, de um regime jurídico, que os garantisse, que lhes desse o mínimo de independência perante os ocasionais detentores do poder? Se esta máquina é hoje toda poderosa e não existirem mecanismos propícios a uma atuação imparcial de seus operadores é claro que, através deles, ela poderá conduzir os destinos da sociedade a seu bel prazer. E poderá assegurar a continuidade dos ocasionais governantes, isto é, de seus mais altos propulsores, os quais, pelo princípio republicano, devem ser transitórios. Poderá assegurar a perpetuação dos que se hajam encastelado na cúpula do Executivo, ainda que através, simplesmente, de sucessores adrede preparados para tanto e que cumpram um interregno assecuratório da persistência do mesmo grupo – quase que como numa ciranda dos mesmos beneficiários do poder. Só mesmo uma máquina preparada para ser isenta, imparcial, leal, e que trate isonomicamente os indivíduos pode garantir a realização dos objetivos do Estado de Direito, prevenindo e impedindo o uso desatado do poder em prol de facções que, mediante favoritismos e perseguições, se eternizariam no comando da sociedade. Assim, segundo me parece, as disposições constitucionais atinentes aos servidores públicos cumprem, acima de tudo, uma função correspondente à dos predicamentos da magistratura e das imunidades parlamentares. É fácil ver-se que as imunidades parlamentares são concedidas aos membros do Congresso tendo em ponto o objetivo de lhes dar independência, evitar que sejam homens pressionáveis e, por isso mesmo, propiciar que possam representar, verdadeiramente, a vontade da comunidade dos eleitores. Os predicamentos da magistratura igualmente não são postos em homenagem aos magistrados, propriamente ditos, mas, como instrumento defensivo de nós outros cidadãos, para que esses homens estejam garantidos e possam ser independentes ante pressões, ensejando-lhes atuar com imparcialidade, com neutralidade. Esse mesmo objetivo, induvidosamente reconhecido como tal no que concerne ao Legislativo e Judiciário, é igualmente buscado pelo texto constitucional ao tratar dos servidores públicos. Apenas, a forma protetora não é coincidente com aquela adotada no que atina aos deputados, senadores e no que respeita aos magistrados. Sem embargo, traduz igualmente um mecanismo que se propõe a assegurar, quando menos, dois objetivos: igualdade de todos os cidadãos no acesso aos cargos públicos administrativos e proteção a um comportamento isento, neutro, imparcial, dos que neles sejam providos. O livre acesso aos cargos públicos prestigia o ingresso mediante suficiência, mediante qualificação, disputada em abertas pelos vários interessados. Se assim não fosse, os agentes que estivessem controlando o poder em dado instante histórico poderiam canalizar para o aparelho estatal unicamente os seus partidários, os seus amigos, os seus afilhados, os membros do mesmo grupo político, e poderiam, evidentemente, embargar o acesso ao serviço público dos que lhes fossem adversários, dos que lhes fossem inimigos, dos que lhes fossem contendores políticos, dos que tivessem ideologias, opiniões, convicções diferentes do grupo dominante. Evidentemente, poderiam, uma vez assenhoreados dessa máquina, distribuir como prebendas os benefícios públicos, outorgar favores àqueles que com eles se acumpliciassem, inclusive politicamente e, pelo contrário, efetuar perseguições, causar dissabores para os que não comungassem da mesma linha dos ocupantes do poder. |
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