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O Prof. Geraldo Ataliba convidou-me para, nessa primeira aula, que não é uma aula de direito tributário, mas de hermenêutica do direito tributário, recordar, juntamente com ele, algumas noções mais simples, mas justamente por isso, fundamentais, da ciência jurídica e, em consequência, vestibulares ao estudo de qualquer dos ramos do Direito e, portanto, do direito tributário também. Não vamos fazer mais do que lembrar noções que todos nós temos, enfatizando, entretanto, alguns aspectos destas noções, recebidas normalmente em nossa formação acadêmica, mas que por passarem desapercebidas, costumam ser causa dos maiores equívocos, na interpretação do Direito em seus vários ramos. Vamos, então, recordar alguma coisa quanto à estrutura do Direito, quanto ao caráter do Direito e quanto às decorrências imediatas do aspecto formal do Direito, tão desconhecido hoje em dia. Sabemos que uma vez que existem relações entre homens, na sociedade, é indispensável uma disciplina delas. É preciso, por conseguinte, que sejam reguladas as várias situações passíveis de existir no curso da vida social. O Direito não é senão aquele instrumento que regulamento os comportamentos humanos da vida social. Em outras palavras, e do modo mais singelo possível que poderíamos dizer que o Direito é meramente um aparelho de coação, é um instrumento de coação. É um instrumento através do qual são reguladas situações e comportamentos, não apenas comportamentos, como de hábito supomos. Têm, por isso, as regras jurídicas, as normas de Direito, um caráter meramente instrumental. Elas se constituem em um instrumento destinado a regular a vida social, a fim de instaurar nela a paz e a afirmação de determinados valores, coligidos pela força legislativa, como sendo relevantes para o bem-estar de todos. Instrumental que é o Direito, seu conteúdo varia de acordo com as épocas, de acordo com os lugares, de acordo com os pontos-de-vista políticos dominantes em cada época. O conteúdo do Direito varia, não o Direito: o conteúdo dos mandamentos se altera, mas o Direito é como que o invólucro, capaz de reter dentro de si os mais variados conteúdos. Por isso podemos dizer que é Direito o Direito grego, o Direito soviético, o Direito norte-americano, o Direito chinês, o Direito brasileiro, o Direito egípcio do passado remoto. Todos eles têm em comum alguma coisa, que faz deles ser Direito, conquanto os mandamentos e as situações previstas possam ser profundamente diferentes em seu conteúdo. Poder-se-ia dizer, então, que o Direito não é senão o conjunto de regras que se impõe, coercitivamente, na vida social, para disciplinar situações e comportamentos humanos. A ciência do Direito não é a ciência do conhecimento destas várias regras, não é, na verdade, a simples inteligência da totalidade das regras, mas é a compreensão da lógica que preside o relacionamento entre elas. Podemos, por isso mesmo, dizer que alguém é um cientista do Direito, conhecendo apenas um dado. Quem conhece o Direito brasileiro não conhece, necessariamente, o Direito hindu e será um cientista do Direito, não porque ele saiba o conteúdo das regras jurídicas existentes no Brasil, mas porque conhece o mecanismo de relacionamento das regras jurídicas, porque ele apreende a essência que comanda toda a mecânica de entrosamento das várias normas; porque tem condições de ponderar devidamente as diferentes normas existentes no sistema, sabendo quais delas possuem força categorial, quais dela têm o caráter, além de normas, de princípios e, por isso mesmo, diante dos mais variados sistemas, em lhe sendo dado o conteúdo da norma, ele será capaz de entendê-lo na sua totalidade. Um curso de hermenêutica é, basicamente, um curso que pretende indicar ou extrair quais os elementos básicos, quais os instrumentos para a percepção da lógica de um sistema. O Direito não é uma norma, o Direito é um sistema de normas, é um conjunto de normas. As normas, sabemos, no seu conjunto, pressupõem três elementos: hipótese, mandamento e sanção. A hipótese, que é a previsão abstrata de uma situação ou de um comportamento; o mandamento, que é o comando, o ditame de caráter obrigatório, e a sanção, que é a consequência jurídica desfavorável, imputada a alguém, pela violação do mandamento. Esta é a estrutura das normas jurídicas. Não bastaria, entretanto, para qualificar o Direito, uma vez que idêntica estrutura nós encontramos nas diferentes normas e nem todas elas são jurídicas. As normas sociais, ou de cortesia, ou de civilidade possuem idêntica estrutura – uma hipótese, um mandamento e uma sanção. As normas religiosas, como as normas éticas, possuem também idêntica estrutura. Figuremos alguns exemplos. Num dado instante, na vida social, é uma norma de cortesia, ao nos encontrarmos com alguém que conhecemos, que o saudemos, tirando o chapéu. Se uma pessoa, sistematicamente deixa de proceder desse modo, dada a hipótese “encontrar-se com um conhecido”, violado o mandamento de fazer um aceno de cumprimento, advirá a consequência desfavorável, a sanção. Diante da grosseria do indivíduo, que se recuse, sistematicamente, a saudar seus conhecidos, em breve ele será repudiado por aqueles que um dia foram de suas relações. É uma norma de civilidade, de hábito social, que uma pessoa, quando é convidada, para uma festa a rigor, deve comparecer com um determinado traje. Se numa festa a rigor aparece uma moça com minissaia, ela estará infringindo, diante da hipótese de comparecimento à festa, o mandamento “trajar-se de modo adequado” e sofrerá a sanção, não mais será convidado. Portanto, a estrutura é absolutamente igual. As normas éticas, as normas sobretudo religiosas, possuem igual estrutura. Uma pessoa de convicções católicas sabe que não deve fazer juízos temerários a respeito de terceiros. Se fizer, transgredindo o mandamento, sofrerá uma sanção, que, presume para sim, será extraterrena, fora da Terra. Dependendo da convicção religiosa, poderá ser até na Terra, em outra encarnação, se se tratar de um espírita. Mas é sempre projetada a sanção para momento posterior, não ligado à vida presente do indivíduo. Mas a estrutura é absolutamente igual. Quando a norma é meramente de caráter moral, sem sanção jurídica, há também uma sanção, que é a reprovação interior. É aquela consciência dolosa, gravosa, de que se fez algo que não satisfaz, intimamente. O que dá especificidade à norma jurídica? O que a torna diferente das demais normas? Hans Kelsen, notável jurista tcheco-eslovaco, atualmente havido como austríaco, chefe da escola de Viena, ao expor a estrutura das normas jurídicas e as diferenças de sanção, indica que o que particulariza as normas jurídicas, comparativamente com as demais, é unicamente o fato, a circunstância, de que a sanção pode ser imposta coercitivamente aos indivíduos, pela força. Ela socialmente se afirma, ela se impõe socialmente, ela constrange. Se alguém se recusar a me cumprimentar, eu terei até cometido um crime se, pela violência, agarrando-o e sacudindo-o, obrigá-lo a tirar o chapéu. Eu não posso, coercitivamente, pretender dos organismos constituídos que imponham aquele comportamento. Quando, todavia, alguém, viola uma norma de caráter jurídico, através da sanção, que é o modo alternativo, por assim dizer, pelo qual se satisfazem as normas quando violadas, o atendimento da minha pretensão. É este o traço próprio, o primeiro deles, caracterizador das normas jurídicas. Mas a segunda característica, e Kelsen insiste sobre isso, é que o Direito não se compreende examinando a estrutura de uma norma, ou considerando uma norma em si, mas só se compreende quando consideradas as normas no seu conjunto, Por isso, diz esse mestre que o Direito não é uma norma, mas um sistema de normas. Com efeito, as sanções não constam, necessariamente, associadas ou ligadas ao corpo da norma; podem estar espalhadas ao longo de um sistema. Pode haver mais de uma sanção, espelhadas ao longo do sistema. Por exemplo, diz o Código Civil (LGL\2002\400): “Não podem se casar: As pessoas casadas”. A consequência jurídica desfavorável, a sanção a essa norma não consta do mesmo texto, que diz que não podem se casar as pessoas casadas. Mas nós encontramos que é um ato nulo. Em outro dispositivo estará a sanção, que é a não produção dos efeitos jurídicos do próprio casamento; e isto é que é nulidade. Nulidade não é “não produzir consequência jurídica alguma”; nulidade é não produzir os efeitos jurídicos que estavam preordenados. Os atos nulos produzem efeitos jurídicos. Não, porém, aquele a que se preordenou o indivíduo ao praticar o ato, porque não era idôneo para a obtenção do resultado jurídico. Mas, além disso, vamos encontrar, no Código Penal, que é crime, sendo casada uma pessoa, casar-se novamente. Teremos, então, encontrado duas sanções espalhadas no sistema. Este exemplo singelíssimo já serve para demonstrar que não se conhece, não se pode conhecer, de modo algum, o Direito, levando em conta uma norma, senão um sistema. Esse evento chama a atenção para o fato de que ninguém será nem sequer advogado, quanto mais especialista em qualquer coisa, se não tiver absoluta e clara consciência de que as normas nunca podem ser examinadas isoladamente. Não só tendo em vista este aspecto, que enfatizei, mas porque a compreensão dela se faz inserida num contexto. Por isso Kelsen dizia que o Direito é um sistema de normas. O Conselheiro Ribas, já no século passado, no seu “Curso de Direito Administrativo”, indicava: “As normas tomadas isoladamente, não são senão um acervo de informações, no meio das quais não pode deixar de transviar-se a inteligência, se não proceder a sínteses fundamentais. Uma vez procedidas estas, faz-se luz, nasce a ciência”. Interconhecer e posteriormente interpretar um sistema jurídico é precisamente poder proceder, estar em condições de proceder, estar em condições de proceder àquelas sínteses fundamentais, isto é, a absorção dos princípios matrizes do sistema, que se irradiam por todo ele, que influem diretamente em certas e determinadas normas. Um mestre ilustríssimo do direito público, Agostinho Gordillo, expõe que a inteligência e a compreensão dos princípios é muito mais importante que a compreensão das normas. Diz ele que a norma é um específico e determinado mandamento, mas o princípio, sobre ser norma, tem um caráter de conferir sentido, de conferir uma direção estimativa, de conferir uma dimensão específica, dentro de um sistema. Ele conduz à intelecção das normas, ele se irradia, ele se expande, ele penetra as várias normas. Por isso podemos desde logo dizer que transgredir um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. Quem, interpretando alguma coisa, se apega excessivamente à norma, corre o risco de ofender todo o sistema, de praticar um ato de subversão. Subverte a lógica do sistema. É muito mais grave, na interpretação, transgredir um princípio do que uma norma. Mas, examinemos a segunda e fundamental característica do Direito, em conjugação com o que disse anteriormente, que o Direito não tem determinados conteúdos, mas que o Direito é um invólucro daqueles conteúdos. Examinemos o caráter formal do Direito. O mundo do Direito difere profundamente do mundo natural. O mundo normativo tem a sua existência própria, diversa do mundo natural, desligada dele, com um modo de ser e de existir próprio, diverso do mundo natural. Conhecem todos uma definição de lei, segundo a qual as leis seriam as relações necessárias, que derivam da natureza das coisas. Esta definição pode servir para qualquer coisa, menos para definição de uma lei, em sentido jurídico, menos para definir uma norma de Direito, porque as relações de Direito não derivam da natureza das coisas, derivam da vontade dos homens, que as constroem com liberdade. Há uma independência profunda entre o mundo natural e o mundo normativo e a apreensão do significado dessa diferença é da mais fundamental importância para a interpretação, para a hermenêutica do Direito. No mundo natural, se eu soltar este cigarro, ele inelutavelmente cairá, em razão da lei da gravidade, que enuncia relações que decorrem, efetivamente, da natureza das coisas. É claro que, se fossemos levar isto um pouco mais longe, numa visão kantiana, poderíamos dizer que esta é apenas uma forma de apreensão, dos homens, desse objeto. Mas fiquemos com o mais simples. No mundo do Direito, as coisas não se processam assim. Os homens constroem, livremente, certas situações hipotéticas e enlaçam a esse antecedente um certo consequente. Figuram uma relação entre um antecedente, que é livremente construído pelos homens, e um consequente, também livremente instituído pelo homens. Por isso os sistemas jurídicos podem variar. Um dado sistema pode impor que é obrigatório o voto. Outro sistema impõe que não é obrigatório o voto. O enlaçamento entre essas duas relações é feito pela vontade do legislador. Ele relaciona antecedentes com consequentes. No mundo natural, vigora a lei da causalidade, a relação de causa e efeito: se A for, B será. No mundo do Direito, vigora a relação de imputação: se A for, B deverá ser. Não necessariamente. Se alguém praticar determinado ato, em um determinado sistema, pode ser crime e a pena será de tantos anos: em outro sistema, a pena será outra, ou não será crime o ato, mas será civilmente sancionado. Uma coisa não postula necessariamente outra. É o sistema jurídico que constrói, dispondo, criando um antecedente e relacionando àquele antecedente um consequente, que não decorre obrigatoriamente dele. Vejam bem. Se alguém mata uma pessoa, não é uma consequência de ele haver matado essa pessoa ir para a prisão, ser condenado. Não é uma consequência, não é algo que se processe inexoravelmente, não é compulsão da natureza, não é uma exigência dela, não é imposta por ela. O Direito construiu essa situação. E supôs que se ao “matar alguém”, transgressão do mandamento, pena, tantos anos. Pode esse alguém até ficar impune. Não há nenhuma compulsão natural. A ordem jurídica entendeu de enlaçar, de relacionar duas situações, criando aquele antecedente, que muitas vezes é profundamente diferente do antecedente natural. E relacionou os dois. Porque quis. Poderia relaciona de maneira diversa. Vamos figurar alguns exemplos, para que isso se torne absolutamente claro e vou me valer de um exemplo que dou, todos os anos, aos meus alunos do curso regular e tenho a impressão que é um exemplo muito claro e nos faz a todos recordar a independência do mundo jurídico, do mundo natural e nos adverte contra interpretações ditas econômicas e quejandos, esta do direito tributário, quando se pretende conhecer o Direito. Na África do Sul, onde há “status” diferente para pretos e brancos, onde vigora um racismo execrável, pelo fato de ser branco, o indivíduo dispõe de um conjunto de direitos e de obrigações. Em sendo preto, o conjunto de direitos e de obrigações será diverso. A esfera juridicamente protegida de um indivíduo preto é muito mais restrita do que a esfera juridicamente protegida de um indivíduo branco. Sucedeu que uma moça branca desejou casar-se com um rapaz preto e os pretos e brancos não se podem casar nesse país. O que fez, então, esta moça branca? Pleiteou que se convertesse em preta, para assim poder se casar. E lhe foi deferido. Ela tornou-se preta. É claro que do ponto de vista biológico, natural, nenhuma alteração se processara. Sua pigmentação era a mesma, seus caracteres somáticos persistiram tais como eram. Contudo, juridicamente, houve uma substancial mudança. Vejam a independência do mundo jurídico, do mundo normativo, em relação ao mundo natural. Pelo fato de tornar-se preta, a sua esfera jurídica comprimiu-se. Passou a lhe ser vedado o exercício de certas profissões, o desfrute de certos direitos e adquiriu o direito de se casar com uma pessoa preta, porque preta ela era, perante a ordem jurídica. Diante do Direito, substancial mudança; no mundo natural, nenhuma. Decorridos alguns anos, o casamento não foi bem sucedido e essa pessoa pleiteou da ordem jurídica do retorno à sua condição jurídica de branca, e lhe foi deferido. Em consequência, essa pessoa foi branca, preta e branca, diante do mundo jurídico. Diante do mundo natural, nenhuma espécie de alteração. O que valia para o jurista, por exemplo? A única realidade, que sempre vale para ele — a jurídica. A única. Quaisquer aspectos outros, de caráter moral, de caráter político, de caráter natural, de caráter econômico, quaisquer outros persistiram absolutamente irrelevantes. Dizia-se, na Inglaterra, para exaltar o poder do Parlamento inglês, que o Parlamento poderia fazer tudo, menos transformar um homem numa mulher. Afirmação absolutamente insustentável. É claro que o Parlamento inglês pode transformar um homem numa mulher. Perfeitamente claro. A ordem jurídica constrói suas realidades e seus antecedentes do modo que melhor que lhe pareça e era possível, como é possível estabelecer que determinados indivíduos, que reúnam tais ou quais características, ainda que fisicamente homens, serão havidos como mulher. Diante do mundo natural, será a mesma coisa. Mas, é evidente que não irão, por exemplo, prestar o serviço militar, porque serão mulheres e, se quiséssemos levar isso, caricaturalmente, um indivíduo desses, ao entrar numa “toilette” de cavalheiros, seria repelido e, pelo contrário, teria assegurada a entrada numa “toilette” de damas e todos os benefícios que a ordem jurídica conceda à mulher lhe serão dados. É claro que o exemplo, de que me valho, é caricatural. A ordem jurídica constrói como quer as suas realidades. Eu insisti muito nisso, porque estou fortemente convencido de que a maior parte dos erros de compreensão do sistema jurídico advém do fato de que nós outros, todos nós, que recebemos ao longo dos nossos cursos jurídicos uma formação muito ligada ao substancial, à ideia de bem comum, de satisfação de objetivos de interesse coletivo, de intenções políticas no legislador, queremos buscar no sistema jurídico aquilo que não é ele que nos oferece. Para conhecermos o Direito, enquanto juristas, temos que nos despir das nossas convicções próprias e pessoais a respeito de vários assuntos. Só assim aprenderemos a lógica específica dos ramos do Direito. Vejamos como a construção, que o Direito faz, do seu universo, é por assim dizer arbitrária. Nós sabemos o que é um comerciante. Temos uma noção comum, corriqueira, laica, do que é o comerciante. Mas se a lei define que é para comerciante. Mas se a lei define que é comerciante, se só for comerciante, para gozar dos benefícios do Estatuto do Comerciante, o registrado pela Junta Comercial, o outro, para esses efeitos, não será comerciante, ainda que o seja na acepção comum da palavra. A lei construiu o seu antecedente, do modo que quis, e a ele atribuiu os seus consequentes, que são os que nós vamos aplicar. Estas normas jurídicas e este enlaçamento, que existe entre antecedente e consequente, esta relação não é de causalidade, mas de imputação; imputa-se a um antecedente um dado consequente, que é livremente estabelecido pelo legislador. Não só quanto ao enlaçamento, insisto, não só quanto à consequência, mas também quanto ao antecedente; ele constrói o antecedente que quer, tornando-o diferente do conceito muitas vezes existente no mundo natural. Como derradeira consideração a respeito deste caráter do Direito, vamos observar que, ao contrário do que aquilo que normalmente se supõe, o Direito não é apenas um sistema de mandamentos para comportamentos humanos. Antes, ele precisa, como um jogo de xadrez, traçar as regras quanto à movimentação do cavalo, do bispo, e assim por diante. O Direito precisa construir; não só impor determinados comportamentos, não só conceder determinadas habilitações, mas qualificar situações, que vão ser os termos de referência da norma jurídica. Quando, por exemplo, ele diz “quem é brasileiro”, não há mandamento específico nenhum. Ele está qualificando uma situação – a situação de brasileiro. Então há, na ordem jurídica, uma série de qualificações, espalhadas, e nós temos exatamente que saber relacionar as regras com aquelas qualificações. Por isso se pode dizer, já agora elaborando um pouco mais a noção de Direito, que ele não é apenas um instrumento que estabelece determinados comportamentos, que permite ou que habilita; mas também qualifica certas situações, a fim de que se tenha os destinatários das várias regras, das várias normas. Podemos fazer, afinal, uma pergunta: Qual a essência, que se encontra por trás de todo esse sistema? Será a justiça? Será a paz social, pura e simplesmente? Que é, na verdade, que anima o Direito? O que dá juridicidade a uma norma não é nada mais que a força. O Direito é pura e simplesmente a institucionalização da força. Direito positivo. Estamos falando, evidentemente, do Direito positivo, que é o Direito que todos nós estudamos. O outro, não será como juristas, que vamos conhecer. O Direito é pura e simplesmente a institucionalização da força. Não é a força institucionalizada. É, pelo contrário aquela institucionalização, aquela tradição normativa de uma força que se impôs, a maior das forças sociais. E é claro perceber isso. Se eu agarrar um desafeto, prendê-lo e o mantiver, durante dias, preso em certo local, terei praticado um crime, evidentemente. Vou sequestrar alguém e manter esse indivíduo em cárcere privado. Se o indivíduo for condenado pelo juiz, for preso e mantido numa cela, talvez bastante parecida com aquela em que eu, “sponte propria”, retiver alguém, estará sendo realizada, não a justiça, mas a ordem jurídica. Em ambos os casos, era um ato de força. Em ambos os casos, era um ato de força. Um, protegido pelo sistema; o outro agressivo ao sistema. O mesmo homem, que estava preso por bandido, poderá uma hora depois, talvez, dali a instantes, ser um herói e aquele que o prendeu um bandido, um beleguim. Basta que mude a ordem jurídica; basta que haja uma revolução. Em rigor, não é a ordem jurídica mudada. Ela continua composta de hipótese, mandamento e sanção. Os conteúdos terão mudado. Nas mudanças de sistema social, aquilo que era vedado, aquele que era um agente considerado realizador dos objetivos do sistema, passa a ser um bandido sanguinário, um comunista ou um fascista hediondo; e o outro um herói da libertação. Os sistemas jurídicos permanecem os mesmos. Todos eles têm esse traço. O conteúdo dos sistemas varia. Até onde é lícito recorrer ao conteúdo, para conhecimento do sistema? É claro que se o Direito é um instrumento, embora esse conteúdo não seja em si mesmo jurídico, ele traduz as aspirações que os mandamentos desejam impor e assegurar. Por isso mesmo nós temos que buscar, não em uma norma, repito, mas no sistema de normas, quais os objetivos que o sistema quer realizar, se os traduziu idoneamente. E isto é fundamental. Devemos procurar o sentido que várias normas, que determinadas normas, que o conjunto delas quer impor a certas situações. Desde que estas normas hajam traduzido de modo juridicamente idôneo os seus objetivos, não importa que o legislador desejasse obter tal ou qual resultado. É inútil. A isto nós não temos que recorrer. Importa o que ele tenha conseguido traduzir, de modo juridicamente idôneo, quer dizer, dentro de todo o sistema que ele construiu, aquele sistema efetivamente protegido, não o que ele tenha almejado proteger. Não vou entrar no campo dos Senhores, que eu sou inteiramente alheio ao campo do direito tributário, mas nós sabemos que, às vezes, uma série de objetivos estava no espírito do legislador. Se ele não conseguiu traduzir idoneamente aqueles objetivos, paciência. Ele que faça uma nova lei. Com isso, não fiz mais do que recordar algumas noções, que todos temos, mas que são importantíssimas para a interpretação do sistema jurídico. |